Detalhes do Projeto de Pesquisa

O FENÔMENO JACOBEU COMO PERMANÊNCIA: A POPULARIZAÇÃO DO CAMINHO DE SANTIAGO NO BRASIL

Dados do Projeto

961

O FENÔMENO JACOBEU COMO PERMANÊNCIA: A POPULARIZAÇÃO DO CAMINHO DE SANTIAGO NO BRASIL

2024/2 até 2026/2

ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES

REDE DE PESQUISA SOBRE ARTE E HISTÓRIA DAS RELÍQUIAS CRISTÃS IBÉRICAS

Memória e narrativas

RENATA CRISTINA DE SOUSA NASCIMENTO

Resumo do Projeto

O Caminho de Santiago, de origem medieval, é uma das rotas peregrinatórias mais importantes do cristianismo. Considerado como o primeiro itinerário cultural da Europa vários caminhos foram traçados com o objetivo de conduzir o caminhante/ peregrino até as relíquias do apóstolo na Galícia. O fenômeno jacobeu é constantemente revivido e atualizado. No Brasil o surgimento de diversas associações de amigos do caminho, a produção acadêmica e literária, servem de inspiração e modelo para rotas religiosas, como o Caminho Religioso da Estrada Real. Desde 2017 na cidade de Florianópolis (Santa Catarina), é possível vivenciar a experiência inicial do caminho, sendo o roteiro oficialmente reconhecido e chancelado pela Catedral de Compostela.

Objetivos

1-Discutir a importância e reverberação do culto à Santiago na vivência religiosa e artística brasileira.

2-Fazer um levantamento da toponímia relacionada à Santiago existentes na História do Brasil.

2- Pesquisar sobre a criação do Caminho Brasileiro de Santiago, como parte integrante do turismo religioso nacional.

3-Apresentar um levantamento de parte da produção acadêmica brasileira que envolvam o tema Santiago de Compostela (Área de História)

5-Produzir um mapa das associações ligadas ao Caminho de Santiago no Brasil.

6-Divulgar o Caminho de Compostela dentro do âmbito de uma História Pública.

7- Maior internacionalização do PPGHIST junto ao Comité Internacional de Expertos do Camiño de Santiago

8- Fortalecimento da Rede Internacional de Pesquisa Sobre Arte e História das Relíquias Cristãs Ibéricas.[1]

Justificativa

No Brasil a criação de diversas Associações de Amigos do Caminho, a produção acadêmica e literária, servem de inspiração e modelo para rotas religiosas, como o Caminho Religioso da Estrada Real e o recente Caminho de Caravaggio (2023), entre outros. Desde 2017 na cidade de Florianópolis (Santa Catarina), é possível vivenciar a experiência inicial do caminho, sendo o roteiro oficialmente reconhecido e chancelado pela Catedral de Compostela. 

  1. A Literatura Odepórica sobre os Caminhos


 Gênero literário que corresponde às narrativas, geralmente auto biográficas, sobre as experiências vividas durante uma jornada, a literatura odepórica tem sido bastante difundida e popularizada entre os viajantes e leitores brasileiros que se interessam pelo fenômeno jacobeu, em seus diversos aspectos. Estes relatos expressam um pouco do sentir do peregrino brasileiro que consegue vivenciar a experiência do (s) caminhos que se dirigem a cidade de Compostela, quanto das jornadas realizadas em solo nacional, que englobam a primeira parte do chamado Caminho Brasileiro de Compostela, roteiro chancelado pela Catedral de Santiago, e que pode ser terminado em território espanhol, incluído no Caminho Inglês. Neste aspecto escolhemos como fontes três narrativas: O Diário de um Mago, publicado em 1987; O Caminho de Santiago: uma peregrinação ao Campo das Estrelas, de 1997; e os recentes relatos de peregrinos brasileiros na coletânea de textos intitulada Memória Peregrina, Vinte anos da ACACSC (Associação Catarinense dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela), publicado em 2019. Estes relatos, não são de origem acadêmica, mas são leituras importantes no mapeamento da espiritualidade e das sensibilidades dos peregrinos e apaixonados que percorrem estas vias em busca de fortalecimento espiritual/ emocional, de superação pessoal e física, de novidades, lazer e conhecimento cultural. Estas fontes contribuem na divulgação e popularização do Caminho de Compostela entre o público brasileiro e promovem também interesses vários, seja no âmbito místico quanto no turístico e cultural. 

 O best seller “O Diário de Um Mago”, narra a jornada no âmbito do Caminho Francês, realizada pelo escritor e compositor carioca Paulo Coelho no ano de 1986, sendo a primeira edição publicada no Brasil em 1987. Escolhemos começar por este livro, pois foi a partir de seu enorme sucesso que o Caminho de Santiago se popularizou no Brasil, pois até então o tema era mais restrito a abordagens religiosas e/ou acadêmicas. Paulo Coelho já era um compositor importante, tendo ao lado do cantor Raul Seixas escrito músicas célebres como Metamorfose Ambulante, Tente Outra Vez, Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás, entre muitas outras. Suas canções, e também sua produção literária, sofrem a influência da experiência pessoal do autor, bastante próximo ao ocultismo e participante de sociedades secretas e místicas. Leitura leve e autobiográfica, a aventura começa pela necessidade do autor de recuperar sua espada, que lhe havia sido negada quando participou do ritual de uma ordem, chamada no livro de Tradição. Sem sua espada os poderes mágicos que o acompanhavam como mestre seriam reduzidos ou extintos.

 Para recuperar sua espada, e consequentemente seus poderes, lhe foi ordenado que realizasse uma jornada especial. Conforme a narrativa sua esposa teria repetido a palavra do mestre da Ordem dizendo... “que sua espada estaria esperando por você em uma hora certa, numa data certa, em algum ponto do caminho que você terá que percorrer...”[1] Ao ser indagada sobre qual seria este caminho ela respondeu: “Ah, isto ele não me explicou muito bem. Disse apenas que você procurasse no mapa da Espanha uma rota antiga, medieval, conhecida como o Estranho Caminho de Santiago”.[2] Com este objetivo a epopeia inicia-se em Saint- Jean- Pied- de -Port, no País Basco Francês. Sendo acompanhado por um guia italiano[3] de nome Petrus, o viajante passa por diversas dificuldades e provações. Em todo momento seu guia o ensinava exercícios mentais e espirituais, que poderiam melhorar seu estado emocional. A narrativa está envolta em misticismo, histórias, lutas contra os poderes do mal, e a busca interior pelo próprio caminho. Um dos momentos célebres da jornada é a despedida, e a separação entre o herói da jornada (Paulo Coelho), e seu guia (Petrus); 

Mais uma coisa- disse ele, olhando fundo nos meus olhos. – Quando acabei minha peregrinação, pintei um belo e imenso quadro, revelando tudo o que tinha se passado comigo por aqui. Este é o caminho das pessoas comuns, e você pode fazer o mesmo, se quiser. Se não sabe pintar, escreva alguma coisa ou invente um balé. Assim, independentemente de onde estiverem, as pessoas poderão percorrer a Rota Jacobea, a Via Láctea, o Estranho Caminho de Santiago.[4]


 Após sucessivas reedições da narrativa de Paulo Coelho, e sua influência como divulgação cultural do Caminho, houve uma espécie de apagamento do autor, enquanto referência fundamental no entendimento do fenômeno contemporâneo do caminhante brasileiro. Atualmente o autor tem sido recuperado enquanto agente de popularização da peregrinação à Compostela, e sua experiência mística revalorizada. O consumo cultural globalizado tem por premissa uma maior diversificação, e também uma atração por relatos que contemplam um olhar menos academicista sobre temas históricos e religiosos de longa duração. 

 Um segundo relato também de alcance maior, especialmente na região sul do Brasil, é o diário de viagem do jornalista gaúcho Sérgio Reis (1938- 2018), livro que conta atualmente com 17 edições, o que é indicativo do interesse pela jornada realizada. Também de caráter autobiográfico o livro é importante para a própria preparação objetiva na realização do roteiro, além de envolver os locais visitados pelo caminhante. Existem também diversos trechos que demostram a vivência emocional do autor: “É uma sensação estranha caminhar sobre pedras que foram colocadas e pisadas há muitos séculos[5]. Dá-nos a consciência da finitude da vida terrena frente a certos elementos da natureza. E mais adiante: “O mundo passa por aqui, trazido e levado pelos pés dos peregrinos... e o ambiente, a música, a acolhida nos transportam para outras épocas. Aqui não somos Senhores do Tempo! Ele faz de nós o que quer, nos alerta que somos passageiros...”[6] Uma perspectiva de análise sobre os relatos, nos conduz a uma aproximação com a história das sensibilidades, entendidas aqui como sentidos de uma experiência, que produz um conjunto de valores e crenças associadas a esta prática. “Portanto é privilegiado o olhar que entende a peregrinação como um texto”[7], através da construção de uma ampla rede de significados. Conforme Le Breton[8] o universo simbólico constitui uma especificidade da condição humana, e as emoções obedecem a lógicas pessoais e sociais. A experiência individual contém o germe da experiência dos membros da sociedade[9]

 Com o objetivo de aproximação da prática peregrina atual, vivenciada no Caminho Brasileiro de Compostela, tento também apresentar aqui um pouco da experiência narrada na coletânea de textos Memória Peregrina, Vinte anos da ACACSC (Associação Catarinense dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela). Neste trajeto observa-se também as dificuldades físicas na realização da jornada, e uma intensa conexão com a natureza existente na Ilha de Florianópolis. O primeiro relato refere-se à caminhada que abriu oficialmente a rota, realizada por um grupo de 600 pessoas, no dia 29 de junho de 2017. Conforme a caminhante Anie Juçara Casagrande; “Temos a oportunidade, nesses quase 23 quilômetros, de refletir sobre o sentido da vida e de situações que possamos considerar que não venceremos, e de entender que é preciso seguir e enfrentar passo a passo os desafios diários.”[10] A peregrina Ligia Maria Becker oferece um pouco de sua percepção sobre a rota: “Seguem-se 23 quilômetros de praias, costões, subidas e descidas, paisagem onde o mar, praias, gaivotas, barcos e ranchos de pescadores serão as imagens mais capturadas pelos caminhantes.”[11] Nem sempre os motivos religiosos são apresentados como principais, pois o esforço da jornada, as belezas naturais e a busca por um momento de reflexão sobre a vida, permeiam os relatos. Outro aspecto interessante é experenciar uma nova relação com o tempo, que agora depende do cumprimento de pequenas tarefas e desafios que envolvem a prática do caminho. Podemos notar que a domesticação do tempo trazida pela modernidade, e as diversas obrigações cotidianas impostas pelo mundo do trabalho, redimensionaram a vivência humana. Uma forma de reconexão com um tempo lento e com a natureza pode ser realizada neste caminhar, sendo considerada uma experiência física e espiritual. Em geral os brasileiros que tem esta experiência são de classe média alta, de religião católica ou espírita, mas, no entanto, a prática envolve também um público naturalista, místico, e que possui interesse e curiosidade em conhecer a tradição do Caminho de Compostela. 


1.2- O Caminho Brasileiro de Santiago de Compostela: Algumas considerações

 Como já exposto nos relatos acima o Caminho Brasileiro de Compostela foi oficialmente criado no ano de 2017, trata-se de um caminho de 21 km, reconhecido pela Catedral de Santiago, como parte do trajeto histórico oficial. Incluindo duas trilhas com subidas íngremes e envolvendo quatro igrejas, o caminhante pode usar a quilometragem na contagem geral, para adquirir a Compostela. Após a pandemia de Covid 19, o trajeto tem sido revitalizado. Em 2023 pude realizar este caminho ao lado de um grupo de pesquisadores, contando também com o apoio e a participação dos membros da Associação Catarinense dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela. A caminhada foi realizada no dia 19 de agosto, tendo início na Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, na praia das Canavieiras. Após a praia e a Igreja de São Pedro (Ponta das Canas), começa o trecho mais pesado, incluindo o Morro do Rapa. Este local é muito usado para trilhas e pelo turismo de aventura. Após um pequeno intervalo para alimentação, o próximo desafio foi o Morro das Feiticeiras, que possui uma natureza exuberante. Ao passar pela Paróquia Nossa Senhora dos Navegantes no bairro dos Ingleses é possível continuar a Caminhada pela praia, até o Santuário Sagrado Coração de Jesus, a quarta Igreja que marca o fim do trajeto. A intenção de pesquisa tem por finalidade mapear o perfil dos caminhantes, que já realizaram a rota; estudar a toponímia do lugar; O contexto religioso e político de Florianópolis, que fizeram com que a cidade fosse escolhida para o Caminho Brasileiro; a relação entre o sagrado- profano (Florianópolis é conhecida como a Ilha da Magia), e a influência açoriana na ocupação da Ilha, no século XVIII. Se abrem então diversas possibilidades de investigação sobre o Caminho Brasileiro de Santiago, que ainda estão por serem feitas. 

 2- Marcos Territoriais: Cidades e Tradições

 A existência da toponímia relacionada à presença jacobeia em terras brasileiras não é tão intensa, quanto em outros países da América Latina. De colonização portuguesa o Brasil sofreu a influência primeiramente das devoções marianas (Nossa Senhora Aparecida é a padroeira do Brasil), e de cultos associados a tradição católica de Portugal como Santo Antônio e São Vicente. Nos primeiros séculos da ação colonial, iniciada no século XVI, o catolicismo da América Portuguesa foi mais devocional que sacramental. As disputas e guerras de fronteiras entre Portugal e Espanha, acentuaram as distâncias, vividas também simbolicamente. Por esta razão política e identitária, a presença de cidades que possuem o nome do Apóstolo Tiago em terras brasileiras não é tão comum. Em um primeiro levantamento cronológico é possível mapear a tentativa do projeto castelhano de colonização, inserindo a criação da cidade de Santiago de Xerez na fronteira entre Brasil e Paraguai, no interior do continente sul americano[12]. A fronteira entre os dois projetos coloniais era fortemente marcada por indefinições e conflitos constantes. Em 1593, vindos de Assunção, os colonos castelhanos fundaram a primeira cidade de Santiago de Xerex, localizada hoje nas proximidades de Naviraí, no Mato Grosso do Sul. A precisão topográfica não é consensual entre os pesquisadores. A primeira fundação teria sido liderada pelo conquistador Ruy Diaz de Guzmán[13], contando com o apoio dos Jesuítas. O grande empecilho para a ocupação efetiva era o isolamento, e a forte presença dos indígenas (especialmente os Guaranis). A busca de metais preciosos e sua posição estratégica teria impulsionado a tentativa de urbanização da região. 

 A historicidade dos núcleos urbanos nesta região é complexa, inclusive alguns pesquisadores[14] chegam a dizer que a cidade teria sido fundada e refundada três vezes. Atualmente a historiografia e a cultura material têm em análise duas fundações; A de 1593 e a refundação às margens do atual Rio Aquidauana em 1600, com motivação geopolítica e estratégica. Por ter sido edificada por ordem da coroa espanhola o nome Santiago permaneceu.

Ruy Diaz de Guzmán pretenderia, com essa homenagem, lembrar a terra de onde era originária sua família, a cidade de Jerez de la Frontera, na Espanha. Portanto, quando Ruy Diaz de Guzmán, no ano de 1593, estabeleceu junto às margens do rio Ivinhema, o qual os espanhóis chamavam de Jaguari, topônimo não mais usado, um núcleo urbano, que hoje acreditamos tratar-se da fundação da cidade de Santiago de Xerez, reforçamos e trabalhamos com a hipótese de que esse fato assinalou a fundação da primeira Xerez, que se encontrava localizada na margem direita do baixo curso do rio Ivinhema.[15] 


 Porém, devido às diversas dificuldades encontradas o núcleo urbano teve que ser transferido, consolidando assim a nova fundação de Xerez. Os ataques e a resistência dos indígenas foram as razões da mudança, além da falta de apoio, fome e miséria existente no povoado. A nova cidade refundada compreende atualmente a área conjunta dos atuais municípios de Miranda e Aquidauana, no passado colonial existiam aí os Campos de Xerez. Novamente fracassada a tentativa, a localidade foi conquistada pelos bandeirantes paulistas em 1632. O isolamento em relação a Assunção, e a resistência indígena inviabilizaram igualmente a colonização castelhana no local. 

 Outra cidade cujo nome é São Tiago, encontra-se na região de Minas Gerais, sendo fundada por bandeirantes espanhóis em 1750. Ao redor de uma fazenda chamada Gamelas, foi erigida uma pequena capela dedicada a Santiago, o Maior, dando provável origem ao nome da cidade. O início da chegada dos colonizadores seria pelo interesse no ouro, já encontrado em outras cidades mineiras no século XVIII. Com a ausência deste em grande quantidade, o local serviria para agricultura e pecuária, abastecendo regiões próximas.[16] Um aspecto importante a ser ressaltado é a criação do roteiro turístico “Caminhos de São Tiago”, que começa na cidade de Ouro Preto, e termina em São Tiago, envolvendo 11 municípios. 


 A tradição religiosa ibérica e o culto à Santiago permaneceram na cidade, dando origem a diversas celebrações, como a Folia de Reis (janeiro), a Festa de São Tiago, padroeiro da cidade (25 de julho), além da tradicional Festa do Café com Biscoito, em setembro. Outro festejo bastante tradicional relacionado ao Apóstolo ocorre no Amapá, e reúne na Vila de Mazagão Velho cerca de 55 mil pessoas por ano. Trazida da África no século XVIII, por colonos oriundos da cidade de Mazagão no Marrocos, a festividade é marcada pela disputa simbólica entre mouros e cristãos. Neste sentido a imagem de Santiago Matamouros e a de São Jorge são centrais nas celebrações. A singularidade dos festejos é sua inspiração africana, sendo a maior parte da Vila habitada por negros e mulatos, descendentes dos primeiros habitantes. Herança ibérica e africana se misturam, oriunda da presença do culto à Santiago anteriormente na fortaleza da Mazagão Marroquina, sendo revivida na região amazônica. Hibridismo cultural, carregado de tensões e aproximações a festa é considerada como uma manifestação sincrética de grande valor e visibilidade. Em Mazagão Velho, celebra-se o São Tiago guerreiro. Isso também está ligado a história de Imigração[17]. Mesmo sendo um espaço majoritariamente de colonização portuguesa a permanência do imaginário guerreiro vivido anteriormente no Marrocos, terra de infiéis, se manteve, o que explica a importância do culto a São Tiago. Mazagão Velho assume e reivindica a herança direta da fortaleza de Mazagão[18], integrando a memória do traslado a esta manifestação. Neste sentido o espaço serviria de referencial, de norte. Há sempre espaços mais significativos que outros. A expressão memória dos locais aponta para a possibilidade de que estes possam tornar-se sujeitos, “portadores da recordação e possivelmente dotados de uma memória que ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos”[19]. O local seria o sustentáculo de uma experiência ou de uma narrativa entendida como real, concreta.

 Para finalizar a reflexão sobre os marcos territoriais é preciso inserir também, neste breve levantamento, a pequena cidade de Santiago no Rio Grande do Sul, tendo sua origem remota ligada ao comércio do gado nas regiões das missões. O nome do município veio de uma capela criada pelos jesuítas de invocação ao santo, no ano de 1756. Apesar da resistência indígena ainda presente na época, os portugueses acentuaram a ocupação com violência e guerras, para fazer valer o Tratado de Madri de 1750. No século XIX, com a intensificação da imigração europeia no Brasil, vários italianos, franceses, alemães, belgas e poloneses foram se estabelecendo na região. O fomento demográfico insere-se, desde o início, no projeto colonial português de ocupação das fronteiras, de dizimação das populações indígenas e de apagamento de sua herança cultural. 

Considerações Finais: 

 O culto jacobeu e seu itinerário sagrado é depositário de uma memória secular, ainda de grande reverberação na atualidade. Ao redor da custódia das relíquias do Apóstolo originou-se uma cidade santa, cercada por igrejas, monastérios, conventos e símbolos de origem medieval, que caracterizam sua identidade. De acordo com o historiador Francisco Singul[20] a rota contou com o apoio dos reis cristãos, construtores e protetores de sua importância física e assistencial, fundando novos povoados e cidades, que organizaram sua urbanização ao redor de uma igreja, ou de uma rua principal, em geral inserida no próprio Caminho de Santiago. Sobrevivendo às ações do tempo, às catástrofes, à modernização e mudanças profundas das formas de pensamento, o Caminho permaneceu vivo, inserindo-se em novos contextos e inspirando outras rotas. 

 No Brasil dos séculos XX e XXI a curiosidade e popularização pelo itinerário foi intensificado através das diversas formas de espiritualidades que oferece, da divulgação literária e cultural, e dos marcos históricos deixados pelo passado colonial de origem ibérica. Nossa intenção, com este projeto de pesquisa, é ainda fazer um levantamento completo dessas influências atuais, tendo como suporte as Associações de Amigos do Caminho e a produção acadêmica mais recente. Também é nosso propósito um estudo da presença e influência santiaguista na arte brasileira em suas diversas formas e expressões. Os diários dos brasileiros que realizam a jornada nos fornecem sempre um rico material, que nos proporcionam uma aproximação com a perspectiva desses viajantes sobre a rota e sua valoração enquanto experiência pessoal e cultural. 


[1] COELHO, Paulo. O Diário de um Mago. SP: Paralela, 2017. p 23

[2] COELHO, Paulo. O Diário de um Mago. SP: Paralela, 2017. p 23

[3] Também místico.

[4] COELHO, Paulo. O Diário de um Mago. SP: Paralela, 2017. p 230

[5] REIS, Sérgio. O caminho de Santiago. Uma peregrinação ao Campo das Estrelas. Porto Alegre: Artes & Ofícios, 1999. p 44


[6] REIS, Sérgio. O caminho de Santiago. Uma peregrinação ao Campo das Estrelas. Porto Alegre: Artes & Ofícios, 1999. p 98

[7] CARNEIRO, Sandra de Sá. A pé com fé, brasileiros no Caminho de Santiago. ATTAR Editoria, 2007. p 18


[8] LE BRETON, David. Antropologia das Emoções. Petrópolis: Editora Vozes, 2021

[9] NASCIMENTO, Renata Cristina de S. Os Sentidos do Sagrado no Ocidente Medieval: Emoções, Devoções e Culto às Relíquias Cristãs. Curitiba: CRV, 2023. 


[10] [10] COUTINHO, Ana Lucia; RUDIGER, Catarina Maria; STOFFEL, Inácio; GARCIA, Sérgio R. Vinte Anos ACACSC. Memória Peregrina. Florianópolis: ACACSC, 2019.p 39

[11] COUTINHO, Ana Lucia; RUDIGER, Catarina Maria; STOFFEL, Inácio; GARCIA, Sérgio R. Vinte Anos ACACSC. Memória Peregrina. Florianópolis: ACACSC, 2019.p 123


[12] Como parte do modelo colonizador ibérico para a Bacia Platina.

[13] Ruy Diaz de Guzmán, fundador de Xerez, nasceu em Assunção do Paraguai, segundo seus biógrafos, entre os anos de 1558 e 1560.111 Sua mãe, uma mestiça paraguaia chamada Úrsula, era uma das filhas do grande conquistador espanhol Domingo Martinez de Irala, com uma índia Guarani chamada Leonor. Irala, membro da expedição do adelantado D. Pedro de Mendoza, avô de Guzmán, era ainda muito jovem quando embarcou junto aos demais espanhóis, que seguiram em busca do sonhado Eldorado. O pai de Ruy Diaz, o capitão espanhol Alonso Riquelme de Guzmán, por sua vez, era sobrinho de Alvar Núñez Cabeza de Vaca. NOVAIS, Sandra Nara da Silva. RUÍNAS DE XEREZ: MARCO HISTÓRICO DO COLAPSO DO PROJETO COLONIAL CASTELHANO EM MATO GROSSO (1593 – 1632. Dissertação de Mestrado: UFMS (Dourados), 2004. p 150


[14] Ver: NOVAIS, Sandra Nara da Silva. RUÍNAS DE XEREZ: MARCO HISTÓRICO DO COLAPSO DO PROJETO COLONIAL CASTELHANO EM MATO GROSSO (1593 – 1632. Dissertação de Mestrado: UFMS (Dourados), 2004.


[15] NOVAIS, Sandra Nara da Silva. RUÍNAS DE XEREZ: MARCO HISTÓRICO DO COLAPSO DO PROJETO COLONIAL CASTELHANO EM MATO GROSSO (1593 – 1632. Dissertação de Mestrado: UFMS (Dourados), 2004. p 150- 152


[16] No ano de 1849, São Tiago se tornou distrito de São João del-Rei.

[17] OLIVEIRA, Marilúcia Barros de. São Tiago em Mazagão Velho (Amapá/ Brasil). Cultura Religiosa e Língua. In Revista de la Archicofradía Universal del Apóstol Santiago. n.61. 2019. pg 35-40


[18] VIDAL, Laurent. Mazagão. A cidade que atravessou o Atlântico. SP: Martins Fontes, 2008. p. 258

[19] ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória Cultural. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2011. p 317                         



[20] SINGUL, Francisco. Camino que Vence Al Tiempo. La peregrinación a Compostela. Madrid: Europa Ediciones, 2020. p 11


Equipe do Projeto

Nome Função no projeto Função no Grupo Tipo de Vínculo Titulação
Nível de Curso
DANIEL RIBEIRO SANTIAGO
Email: daniel150ribeirosantiago@gmail.com
Pesquisador Estudante [aluno] [null]
FATIMA REGINA FERNANDES FRIGHETTO
Email: lxa90@hotmail.com
Pesquisador Pesquisador Externo [externo] [doutor]
FLAVIA GALLI TATSCH
Email: galli.tatsch@unifesp.br
Pesquisador Pesquisador Externo [externo] [doutor]
MARIA ISABEL MORAN CABANAS
Email: rederelicario@gmail.com
Pesquisador Colaborador Estrangeiro [externo] [doutor]
RENATA CRISTINA DE SOUSA NASCIMENTO
Email: renatacristinanasc@gmail.com
Coordenador Líder [professor] [doutor]
SIMONE CRISTINA SCHMALTZ DE REZENDE E SILVA
Email: simoneschmaltz@gmail.com
Pesquisador Pesquisador [professor] [mestre]
SUELY MOREIRA BORGES CALAFIORI
Email: suelycalafiori1@gmail.com
Pesquisador Estudante [aluno] [null]
WEMERSON DOS SANTOS ROMUALDO
Email: wemerson0399@outlook.com
Pesquisador Estudante [aluno] [null]
YASMIN BARRETO DE SOUZA FERNANDES
Email: yasminbsf@outlook.com
Pesquisador Estudante [aluno] [null]