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UMA HISTÓRIA DA ESQUIZOFRENIA E DA DESMANICOMIALIZAÇÃO DA LOUCURA
2023/2 até 2026/2
ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES
GRUPO DE PESQUISA EM HISTÓRIA DA LOUCURA
Loucura, cultura e poder
EDUARDO SUGIZAKI
Construção de uma história da esquizofrenia que, colocando-a no contexto das psicoses em que foi inserida pela nosologia psiquiátrica, mostre o desenvolvimento das observações clínicas e tratamentos psiquiátricos e psicopatológicos de maneira a evidenciar as relações entre o saber sobre ela e o espaço asilar, seja no fato de que foi neste que ela, a entidade, foi criada, seja no processo histórico da evolução do saber sobre ela que ele, o asilo, foi abalado pela desmanicomialização e pela evitação do internamento e da institucionalização.
A melhor justificativa para este projeto de pesquisa seria a coerência interna da pontuação dos processos históricos decisivos da relação entre o saber da esquizofrenia e a desmanicomialização, já apresentada logo acima. Enquanto isso, o que falta em termos de levantamento de arquivo, as ausências de setores temáticos inteiros, a arbitrariedade do recorte historiográfico e o caráter ainda precário do rigor conceitual e filosófico que revelam o que é frágil no andamento da pesquisa e no projeto de sua realização. No lugar de revalorizar o que parece melhor fundamentado, parece que uma opção de justificativa – a que se escolhe aqui – seria explicar as falhas, as faltas, as insuficiências já entrevistas, já ameaçadoras.
Parece que o problema mais fundamental deste projeto de pesquisa é o caráter marginal a que foi relegada a participação dos neurolépticos, mais recentemente denominados antipsicóticos, nessa história circular entre a esquizofrenia e a desmanicomialização, aqui projetada.
Ora, a contribuição farmacológica para a desmanicomialização foi decisiva, ao lado da história do desenvolvimento da psicoterapêutica. Será necessário não ignorar a cronologia de seu desenvolvimento desde a primeira aplicação da clorpromazina com efeito psiquiátrico observado, em 1952, por Henri Laborit. Mas as possibilidades de alcance do presente projeto e da minha trajetória de pesquisa exigem que a história epistemológica dos psicofármacos seja retardada para uma próxima fase do trabalho historiográfico, e dependente do sucesso da atual empreitada.
Sobre a aceitabilidade do meu presente recorte, que deixa de lado a história epistemológica dos antipsicóticos, mantendo apenas sob foco da atenção historiográfica os efeitos sociais e culturais deles sobre o processo desmanicomial, parece ser possível a seguinte justificativa teórica. A lógica interna do desenvolvimento dos antipsicóticos parece ser outra que a da racionalização da linguagem da loucura. Nesse sentido, sem um descarte pré-concebido do campo biomédico, admitindo a parcialidade do recorte historiográfico, defendo ser possível dar ao presente recorte a legitimidade de uma linha narrativa que, no meu trabalho futuro, ou por obra de outro historiador da ciência, pode ser integrada numa só tecitura.
Outro problema que pede justificativa é o da escolha da esquizofrenia em detrimento das outras categorias da psicose. Mas este problema está imbricado com o anterior. O privilégio dado a via psicopatológica sobre a via farmacológica tem que ver com a centralidade, na história da loucura, da filosofia e do nosso processo civilizacional moderno à oposição entre a razão e a loucura, a partir do século XVII, privilégio a que se associa intimamente o nascimento da psiquiatria enquanto esforço asilar para restituir o déficit de razão enquanto essência moderna da loucura. Ora, a esquizofrenia é o nome de uma rota de fuga ou de confronto com aquilo mesmo que o Ocidente moderno privilegiou como racional: a linearidade e a reciprocidade comunicativa de uma racionalidade vertida no caráter denotativo da linguagem, tal que se viabilizam os acordos operativos; os estabelecimentos e os funcionamentos das relações de previsibilidade e reciprocidade da ação e da produção, ou seja, da constituição de relações sociais contratuais, tal como se impuseram nas sociedades modernas. As demais categorias centrais da psicose estão mais centradas na relação entre racionalidade, humor e afetividade do que na relação entre razão e comunicabilidade do pensamento. Ora, a primeira é alvo privilegiado dos antipsicóticos; a segunda permaneceu o puzzle de maior envergadura para a própria viabilidade da racionalidade moderna.
Insistindo, mas dizendo de outra maneira, seja do ponto de vista da institucionalização asilar, seja do ponto de vista da racionalização da loucura, foi a inteligibilidade comunicativa da psicose que jogou o papel histórico decisivo. Foi isso que dialetizou de maneira privilegiada a racionalidade e a esquizofrenia, enquanto os fatores de ordem afetiva ou de humor, como na psicose maníaco-depressiva, tiveram um impacto social de menor monta e não tão de vanguarda. Enquanto isso, o saber da loucura e a sua institucionalização asilar estiveram focadas na ordem da coerência e da lógica interna do que é dito, representado e pensado pelo psicótico, o que o desvincula da linguagem, do discurso e da ordem do pensamento das pessoas comuns. É nessa trilha que segue o presente projeto de pesquisa. É isso que me permite, por agora, deixar de lado a história epistemológica dos psicofármacos e adiar também a integração da história das outras entidades nosológicas da psicose.
É bem verdade que ao lado das descrições clínicas a propósito da esquizofrenia, também as da paranoia, em toda história da psiquiatria, foram vistas como uma alteração que atinge a faculdades do pensar, de construção da comunicação humana ou da linguagem e, portanto, da própria estrutura do conhecimento humano do mundo. A razão pela qual a presente propositura escolheu privilegiar a esquizofrenia como cordão de Ariadne para a narrativa historiográfica que enlaça o tema da desmanicomialização é dada pelo avesso do trabalho tão fundamental de Lacan (2002) sobre As psicoses. Em termos temáticos (não em termos psicanalíticos, certamente), Lacan subsumiu a esquizofrenia na paranoia, nesse seu extensivo trabalho de interpretação da obra de Schreber, que enlaça a de Freud e a da psicanálise até a década de 1930. Ao fazê-lo, entretanto, Lacan privilegiou a via interpretativa do complexo de Édipo. Isso foi magistralmente criticado em O anti-Édipo de Deleuze e Guattari (2010), obra que repõe em seus próprios termos a centralidade da análise pela via esquizofrênica. Embora isso não signifique centralidade de uma doença sobre outra, de uma entidade psiquiátrica, psicanalítica ou psicopatológica sobre outra, parece que esse livro recolocou a trilha da inteligibilidade nos processos sociais (digamos ‘maquínicos’, para usar a expressão dos autores), retirando-a da via que, mesmo passando pela linguagem como pretendeu Lacan, retorna à interioridade subjetiva, considerando Édipo como constitutivo da subjetividade humana, como aparece para Lacan, e não como uma constituição histórica e social determinada, como aparece em Deleuze e Guattari. Via esta que, a seu próprio modo, é também a da opção aqui projetada.
De qualquer forma, o privilégio que estamos a dar à polaridade entre razão e loucura remonta ao fato de Foucault (2004, p. 476) ter mostrado que, em Hegel, ganha expressão e consciência filosófica a emergência de um novo modo epocal de conceituar a loucura em nossa modernidade, após o nascimento do alienismo de Philippe Pinel. Por oposição à Modernidade Clássica dos séculos XVII e XVIII, que entendeu a loucura como um antagonismo total e excludente em relação à razão, o nosso tempo a concebe como perda, desarranjo ou contradição provisória e regionalizada, donde a possibilidade da cura e da intervenção terapêutica da medicina, que não existia na época Clássica.
Os tópicos ou passos da história que este projeto pretende narrar, apresentados na Introdução deste projeto de pesquisas, representaram passos na racionalização da loucura, ou seja, na ultrapassagem da própria noção hegeliana de que a loucura é uma suspensão parcial e temporária da razão. O que foi apresentado, nesses tópicos ou passos da história do saber da esquizofrenia, foi uma narrativa sobre a construção do saber de que a comunicação esquizofrênica não é nem ausência temporária, nem suspensão parcial da razão, mas comportamento comunicativo sistêmico, que obedece a uma racionalidade própria. Daí o nome tão sugestivo criado pelo grupo de Milão: terapia sistêmica. O sistema em questão é o circuito de retroalimentação comunicativa de tipo cibernético entre grupos de convívio humano ou, para usar uma expressão de L. Wittgenstein, de comunidades linguísticas. Isso fica muito claro no modo como o grupo de Milão procura estabelecer, para fins terapêuticos, inteligibilidades do uso da linguagem não só da família, mas nos grupos de interação pelos quais a família integra a sociedade.
Nome | Função no projeto | Função no Grupo | Tipo de Vínculo | Titulação Nível de Curso |
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EDUARDO SUGIZAKI
Email: eduardosugizaki@gmail.com |
Coordenador | Líder | [professor] | [doutor] |