667
SACRALIDADES IBÉRICAS: VIVÊNCIAS RELIGIOSAS NA IDADE MÉDIA
2021/2 até 2023/2
ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES
CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES
Poder e representações
RENATA CRISTINA DE SOUSA NASCIMENTO
Geral:
1-Discutir as representações atribuídas aos vestígios sagrados na Península Ibérica, e como estes contribuíram para a cristianização em um contexto político conturbado, considerado hipoteticamente ameaçador. Elementos raros e preciosos, as relíquias cristãs foram utilizadas para sacralizar e mitificar reinos e cidades
Específicos:
1- Analisar a popularidade devocional da adoração às relíquias, e, em que sentido, esta prática propiciou a ocupação demográfica e econômica da região. No contexto ibérico a posse destes vestígios serviu como recurso discursivo e simbólico, de afirmação de superioridade política e religiosa.
2-Escrever um livro sobre os usos políticos e espirituais das relíquias, dando ênfase às relações entre as sacralidades ibéricas e o poder.
Na tradição cristã lugares, imagens e objetos serviram como elementos de “reevocação” de um passado memorável, que se desejava perpetuar. Entre esquecimento e lembrança consolidou-se o que deveria ser permanente, eterno. Esta demanda pelo passado deu ao cristianismo seus primeiros alicerces, solidificando-se os lugares santos e os personagens memoráveis, que constituem sua identidade. Cristo e seus discípulos, fundadores das primeiras comunidades, são modelos essenciais na construção de uma história que se considera sublime. Inicialmente perseguidos os cristãos voltaram-se à veneração dos restos sagrados de seus mártires, considerados heróis da fé, aqueles que venceram a morte, pois através de sua matéria realizaram-se milagres. Esta santidade daria nova vida a uma materialidade teoricamente morta. Elos entre vivos e mortos, as relíquias representam a memória e a presença física, mesmo fragmentada, por meio das quais é possível tocar na sacralidade. Daí o significado das sepulturas, dos monumentos e dos objetos que emanavam santidade. Não se trata apenas da memória, mas da própria pessoa; não da lembrança, mas da presença[1]. O valor atribuído a estas era simbólico e material. Quanto mais importante à relíquia, mais valor de mercadoria ela tinha. Entre estas os objetos ligados à vida de Cristo, e os corpos dos apóstolos são as de maior relevância.
Estar próximo a estes sagrados despojos reforçava a crença em seu poder miraculoso. O território regado pelo sangue dos mártires e santos simbolizava a consagração do local. Daí as celebrações, as peregrinações e o aparecimento das relíquias por contato, objetos santificados através da proximidade e sacralidade de seu possuidor. A multiplicação destes fragmentos foi enorme, o que não diminuiu seu valor para os fiéis. Deste mosaico de tesouros divinos, iremos analisar dois casos; O primeiro deles, relacionado a um martírio coletivo, e outro a uma coleção de objetos sacros.
Dos 48 (ou 53) mártires[1], provavelmente se conhecem as supostas relíquias de 28. Grande parte destas estão atualmente na Igreja de São Pedro, na cidade de Córdoba. O primeiro divulgador e promotor do culto às santas relíquias destes mártires foi San Eulogio (800- 859)[2], que através de seus escritos incentivou a veneração a estes vestígios. Sua intenção teórica foi a de se opor à total islamização de al- Ándalus, em um momento de domínio muçulmano.
Esse domínio se articuló a través de uma norma (la dimma o protección) que, fundada en la doctrina corânica, consagraba el sometimiento político y religioso, así como la inferioridade jurídica y moral de los cristianos, cuyas personas y biens quedaban en buena medida al arbítrio de sus dominadores y a expensas de las circunstancias que inclinaban a éstos hacia uma mayor o menor tolerância.[3]
O contexto político acabou induzindo vários cristãos à apostasia. Outros preferiram migrar para regiões não islamizadas. O desenvolvimento do estado islâmico foi pungente, e em grande parte do século IX (que é o momento da nossa análise), não parece que os muçulmanos tinham interesse direto em proibir os cultos cristãos. De todo modo a Igreja foi a maior prejudicada com as conquistas de 711, pois perdeu sua autonomia, tornando-se juridicamente dependente. Córdoba consagrou-se na principal urbe, residência real e cidade de grandes trocas culturais. O período dos martírios voluntários concentrou-se entre 851- 859 durante o emirado de Abd Al- Rahman II (822- 852), e especialmente durante o governo de seu sucessor Muhammad I (852- 886), menos diplomático frente às aspirações políticas dos cristãos. Muhammad I acabou com as concessões feitas aos cristãos, por seu antecessor, expulsando-os de seus postos no palácio e no exército, mandando também destruir todo edifício religioso ampliado antes de 711, especialmente suas partes mais visíveis, como torres e campanários.[4] A revolta ganhou então dimensão política. Apesar da comunidade cristã ainda ser maior, o número de recém conversos ao islã não parava de crescer. Quem seriam então os protagonistas destes movimentos? “Al frente de todo este se há colocado tradicionalmente a san Eulogio y, en menor medida, a su amigo Álvaro. Desde luego, resulta innegable que ambos, sobre todo el primero, alentaron com sus escritos el movimiento”[5]. Entre estes também encontravam- se monges, membros do clero, leigos e outros de difícil precisão. São Eulógio cita vários personagens em seus escritos. Este teve a intenção de propagar o movimento, comparando seus participantes aos primeiros mártires do cristianismo. Também tentou validar suas relíquias[6].
Entre as infrações religiosas contra o islã, dignas de punição severa estavam às pregações públicas de outra fé, e especialmente o crime de proferir injúrias contra a religião e seu profeta. Ao insultar o profeta os fiéis foram punidos com a morte. A principal obra do eclesiástico cordobés é o Memorial de los Santos, formada por três livros. Neste escrito tentou solidificar a validade dos martírios, inserindo- os na história gloriosa do cristianismo.
...observé que todos habían elegido sin vacilar morir por el testamento y las leyes de nuestro Dios, se lo dedique a todas las iglesias fundadas sobre la más sólida piedra, a fin de que todo el mundo tomase del triunfo de aquéllos tan gran ejemplo y alegria por su Consuelo y gloria, como fue el hecho de haber venido de diversos lugares y afrontado los lances del martírio para ejemplo de toda la Iglesia.[7]
Ao tentar legitimar, e mesmo impor o culto aos restos sagrados destes homens e mulheres, Eulógio contribuiu para transformar criminosos civis em heróis da fé, dignos de culto, mesmo que a princípio estes vestígios não tenham realizado necessariamente nenhum milagre. Estes serviam como modelos de resistência política e religiosa, frente à ampliação e efetiva inserção de novos atores sociais, e às mudanças nas relações de poder na região. O impacto posterior destas “mortes martiriais” foi significante, tanto em Córdoba quanto em toda Península. Em dezembro de 1997 ocorreu a abertura da urna/arca dos santos mártires, nesta foram contabilizadas 450 peças ósseas de adultos, além de outras, aparentemente de crianças, e também restos de ossos pulverizados. Alguns vestígios também se espalharam por várias localidades da Hispania medieval.
Existem várias tradições narrativas sobre o trajeto da Arca Santa até Oviedo. As historicamente mais citadas são a Historia legionensis (llada silensis), e a obra histórica de Pelayo de Oviedo- Liber Testamentorum Ecclesia Ouetensis. A produção pelagiana fazia parte da política propagandística episcopal, já iniciada anteriormente pelo bispo Arias. Ambos os textos foram produzidos no século XII. As relíquias seriam consideradas (nestas narrativas), como protetoras do reino. Conforme a Historia silensis;
...el rey Alfonso, como tuviese nímia castidade de alma y de cuerpo, mereció obtener del Señor uma arca conteniendo diversas relíquias de santos. La cual arca, amenazando, por ventura, el terror de los gentiles, en lo antiguo fué transportada en un navio desde Jerusalén; permaneció por espacio de algún tiempo en Sevilla, Y luego, durante cien años, en Toledo. Como outra vez oprimiesen los morros cuando ya nadie se les resistia, los cristianos arrebataron secretamente el arca de Dios, y por sítios excusados llegaron hasta el mar, y puesta allí en uma nave, guiándolos Dios abordaron al puerto de Asturias, cuyo nombre es Subsalas, por aquello de tener cerca y encima la regia ciudad de Gijón.[8]
Ainda, conforme a narrativa, o rei Alfonso “decreto fabricar una sede para la venerable arca...ansiándolo más y más cada dia, desde entonces por espacio de treinta años fabrico uma iglesia en Oviedo de admirable obra, en honor de san Salvador”.[9] Afonso II, o Casto[10] foi rei das Astúrias de 791 a 842. A ele é atribuída à construção da Câmara Santa, depois convertida em capela- relicário. Conforme Raquel Álvarez (2017: 77), a cidade tornou-se então em um centro de sacralidade, em um território cercado por montanhas e protegido simbolicamente pelas relíquias e pelas tumbas dos reis. Foram os eruditos bispos ovetenses, os criadores desta cartografia imaginária. Apesar da tradição existente, é hoje consenso que os vestígios da arca somente seriam objetos de veneração depois do século XI. A monarquia asturiana somente aparece vinculada às relíquias de são Salvador de Oviedo, em fontes mais tardias. “Tanto los monarcas asturianos como los leoneses favorecieron el culto a Santiago a la vez que silenciaban el conjunto relicario de Oviedo que, como se verá más adelante, no aflorará en las fuentes hasta el reinado de Alfonso VI (1047-1109)”. (ÁLVAREZ, 2017: 62) A ata de abertura da Arca Santa de Oviedo é objeto de inúmeras discussões historiográficas. Não há consenso sobre sua autenticidade. Segundo o documento ela teria ocorrido em 14 de março de 1075. Nela estariam presentes o rei Alfonso VI[11] (chamado, o Bravo) e sua irmã Urraca, além dos bispos Aria e Bernardo de Palência. Aqui o rei Alfonso VI torna-se protagonista deste ato solene. Estes tesouros serviriam como instrumentos de prestígio político e religioso para a dinastia asturiana, daí sua associação a estes personagens reais. Esta coleção de restos sagrados trata-se de um conjunto de elementos ligados à essência da fé cristã. Esta lista inclui diversos objetos, de grande valor histórico- sacro;
Lista de algumas relíquias da Arca Santa[12]:
1-Veterotestamentarias - Huesos de los Profetas.
2-Cristológicas: De la santa cruz, de la sangre, del pan de la cena, de la piedra del sepulcro, de la tierra santa, de la túnica repartida en suertes, del sudario.
3-Marianas - De los vestidos de la Virgen, de la leche de la Virgen, cabellos de la Santa Vírgen.
4-Apostólicas - De san Pedro, san Pablo, santo Tomás, san Esteban, Santiago el menor, san Andrés, san Juan, san Bartolomé.
5-De santos y mártires - Máximo, san Germano, san Baudilio, san Pantaleón, san Cipriano, santa Eulalia, san Sebastián, san Cucufate, del palio de san Sulpicio, de santa Ágata, santos Emeterio y Celedonio, san Romano, san Fructuoso, santos Augurio y Eulogio, san Víctor, san Lorenzo, santos Justo y Rufina, santos Servando y Germano, san Liberio, santos Máximo y Julia, santos Cosme y Damián, santos Sergio y Baco, san Esteban Papa, san Cristobal, vestido de san Tirso, san Julián Pomerio (obispo de Toledo), san Félix, san Pedro exorcista, santa Eugenia, san Martín, santos Facundo y Primitivo, san Vicente levita, san Fausto, san Juan, santa Inés, santos Simplicio, Faustino y Beatríz, santa Eulalia (de Barcino), santos Emiliano y Jeremías, san Rogelio, san Siervo, santa Pomposa, y otros muchos (fuera del arca).
Na viagem realizada por Ambrosio de Morales, a serviço do rei Felipe II (1572), o Principado das Astúrias merece destaque por possuir a sabana santa[13]. “El testemonio es la veneracion antiquíssima en que se tiene esta Relíquia, y la tradicion tambien Antígua de que se sacó del Arca Santa...”[14] O santo pano é, sem dúvida, o objeto mais precioso contido na Arca, e aparece desde o primeiro inventário possivelmente realizado. Não há dúvida de sua permanência nas Astúrias desde o século XII. A invasão persa em Jerusalém seria, conforme a tradição, a origem da saída da caixa de cedro da cidade, chegando até a Hispania. Junção político- religiosa que, no caso estudado, confere a determinados vestígios grau de excepcionalidade, sendo veículo de status, consolidando a versão de que Deus estava legitimando a casa real, a região e a sé, que poderia se sobrepor em importância às demais. Estratégia eficaz e de grande durabilidade. Esta aproximação simbólica garantia uma possibilidade de intervenção do sobrenatural, na vida humana.
A forma de vivência do sagrado também está inserida em um projeto institucional de legitimação, e manutenção do poder político. “A implantação territorial do cristianismo fez- se por modos complexos de apropriação sacral de espaços reais e imaginados, em que avultavam a descoberta de corpos santos, e imagens...” (ROSA, 2011: 388). Comportamentos e estratégias diversas, necessárias à consolidação da superioridade de reinos e cidades, frente às muitas disputas. Neste âmbito inserem - se as relações entre o material e o espiritual, presentes no ato do morrer. Os vestígios especiais são bens de natureza material, mas que produzem riqueza espiritual. União lícita entre céu e terra, que se torna concreta através dos corpos santos, e de objetos que pertenceram a personagens sublimes. Produtores de memória os restos mortais presentificam a essência da santidade, que poderia ser concreta, tocada, sentida. Os fragmentos santos foram então considerados ferramentas de Deus, na distribuição de sua graça.
A seus possuidores estendia-se a graça deles emanada. Aludindo às especificidades dos reinos que compõe o espaço ibérico medieval, é fator comum a presença de relíquias dos santos, e de objetos especiais, que teriam supostamente tido contato com o próprio Filho de Deus. (Nascimento, 2018), fortalecendo o patrimônio sacro da região. Esta posse, tão desejada, garantia uma auréola de excepcionalidade aos reinos, e asseguravam sua proteção frente aos inimigos. Religiosidade controlada por rituais e cerimônias diversas, que encenavam a presença do divino, através de suas relíquias. O mapa das peregrinações incluía espaços singulares, desenhando caminhos trilhados com fervor pelos fiéis. A busca por ossos santos, muitas vezes fragmentados e falsificados solidificaram a espiritualidade das massas, favorecendo a criação de um complexo sistema, que tinha poder inclusive para ligar os vivos aos mortos. Tesouros espirituais, a função simbólica dos fragmentos aproximava o homem comum de seu Deus, facilitando uma vivência espiritual concreta, consolidando centros religiosos de prestígio.
[1] Alguns mártires, conforme a cronologia de sua morte: Perfecto (850),Isaac (851), Sancho (851), Pedro sacerdote (851), Walabonso (851), Wistremundo (851), Sabiniano (851),Habencio (851) Jeremías monje(851), Sisenando (851), Pablo diácono (851), Teodomiro (851), Flora (851), Maria (851), Gumersindo (852), Servodeo monje(852), Aurelio (852), Natalia (852), Félix seglar (852), Liliosa (852), Jorge (852), Cristóbal (852), Leovigildo (852), Emita (852), Jeremías seglar (852), Rogelio (852), Servideo seglar(852), Fandila (853), Anastasio (853), Félix monje(853), Digna (853), Benilde (853),Columba (853), Pomposa (853), Abundio (854), Amador (855), Pedro monje(855), Luis (855), Witesindo (855), Elías (856), Pablo monje (856), Isidoro (856), Argimiro (856), Áurea (856), Rodrigo (857), Salomón (857). Eulogio (859) y Leocricia (859). (In DUEÑAS, Ángel F. Las Reliquias de los Mártires de Córdoba: Revisión y Comentários. In Boletin de la Real Academia de Córdoba, de Ciencias, Bellas Letras y Nobles Artes. N 146, AÑo LXXXIII- junio, 2004. p 222)
[2] Os restos mortais de San Eulogio foram transladados para a Catedral de Oviedo, e encontram-se hoje em uma urna de prata.
[3] SAUS, Rafael Sánchez. Al- Andalus Y La Cruz. La invasión musulmana de Hispania. Barcelona: Stella Maris, 2016. p 15
[4] ROLDÁN, Pedro Herrera. Introducción. In SAN EULÓGIO. Obras. Edición de Pedro Herrera Roldán. Madrid: Ediciones AKal, 2005 pgs- 10- 11
[5] ROLDÁN, Pedro Herrera. Introducción. In SAN EULÓGIO. Obras. Edición de Pedro Herrera Roldán. Madrid: Ediciones AKal, 2005 p 15
[6] Ver GUIANCE, Ariel. Eulogio de Córdoba y las relíquias de los mártires. In Revista Historia Autônoma, 11 (2017), pp 279- 297
[7] Memorial de los Santos . In SAN EULÓGIO. Obras. Edición de Pedro Herrera Roldán. Madrid: Ediciones AKal, 2005. p 67
Tipo de relíquia
[8] MORENO- GÓMEZ. M. Introducción a la Historia Silense. Madrid. Est. Tipográfico Sucesores de Rivadeneyra, 1921. pg LXXXII
[9] MORENO- GÓMEZ. M. Introducción a la Historia Silense. Madrid. Est. Tipográfico Sucesores de Rivadeneyra, 1921. pg LXXXII
[10] Nasceu em 759.
[11] Reinou até 1109.
[12] Baseada em http://mirabiliaovetensia.com/La_Tradicion_del_Arca_Santa.html
[13] Viagem de Ambrosio de Morales Por Orden Del Rey D. Phelipe II. A Los Reynos de Leon, Y Galicia, Y Principado De Asturias. Para reconhecer Las Reliquias de Santos, Sepulcros Reales, Y Libros manufcritos de las Cathedrales, Y Monafterios. Madrid: Antonio Marin, Año de 1765.
[14] Idem. p 80
[1] OEXLE, Otto Gerhard. A Presença dos Mortos. In BRAET, H & Verbeke, W. (eds) A Morte na Idade Média. SP: Edusp, 1996. p 31.
Nome | Função no projeto | Função no Grupo | Tipo de Vínculo | Titulação Nível de Curso |
---|---|---|---|---|
RENATA CRISTINA DE SOUSA NASCIMENTO
Email: renatacristinanasc@gmail.com |
Coordenador | Pesquisador | [professor] | [doutor] |