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DIREITOS HUMANOS: DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA AO MERCADO E O PROCESSO DE CIDADANIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
2020/1 até 2022/1
ESCOLA DE DIREITO, NEGÓCIOS E COMUNICAÇÃO
GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA
RAFAEL ROCHA DE MACEDO
Objetivo Geral (ou primário)
A partir das relações de convergência e tensão entre os direitos humanos e o sistema econômico capitalista, perquirir quanto a possibilidade de realização da cidadania no mundo contemporâneo caracterizado pela globalização e pela pluralidade de espaços decisórios que comprometem a atuação do Estado junto ao poder econômico.
Objetivos Específicos (ou secundários)
- Examinar as relações historicamente construídas entre os direitos humanos e o mercado, analisando suas convergências e tensões, desde a antiguidade até o mundo contemporâneo;
- Associar a ideia concretização dos direitos humanos ao reconhecimento do indivíduo enquanto cidadão na Sociedade Econômica contemporânea;
- Demonstrar que as tensões e convergências verificadas entre os direitos humanos, o mercado e a globalização, são capazes de moderar o poder econômico e de promover o incremento do processo de cidadania no mundo contemporâneo;
- Difundir e oportunizar, sobretudo aos alunos de iniciação científica da Escola de Direito da PUCGOIÁS, o contato, a apreensão de conhecimento e a reflexão a partir de obras clássicas, geralmente não estudadas com profundidade na graduação.
Concebidos a partir da filosofia estoica do direito natural e posteriormente combinados com ideias iluministas, os direitos humanos compreendem temas que remontam o período da Antiguidade e que se estendem até a Idade Contemporânea, na qual o direito, revestido de tecnicidade, é precipuamente um instrumento de decisão, orientado para promover a segurança jurídica necessária às relações econômicas que permeiam a sociedade.
As percepções intelectuais da igualdade e da dignidade, de matriz jusnaturalista, reverberam o status de premência da espécie humana sobre os outros seres do planeta revelado ao longo da história, sobretudo na religião e na filosofia. Na obra Filosofia da História, Hegel narra a história universal, situando-a como o progresso na consciência da liberdade[1]. Esse progresso ocorre de forma paralela com a evolução jurídica da humanidade e culmina com o espírito consciente de sua liberdade, que deseja a verdade e a eternidade em si e por si universal.
O auge da história universal, segundo Hegel, ocorre quando a liberdade se realiza como subjetividade, aspecto que no direito se revela na justiça da equidade e na vitória dos direitos humanos. Assim, o propósito racional do Espírito teria coordenado todos os eventos históricos numa linha do tempo denominada de história universal, que tal como a história dos direitos humanos, tem início no Oriente e progride em direção ao Ocidente, passando pela Civilização Grega, pela Civilização Romana e atinge seu cume na Idade Moderna.
É em decorrência da Revolução Francesa que os Direitos Humanos se universalizam como expressão de dignidade humana, ao passo em que é no mundo moderno que se atinge a consciência do espírito subjetivo do que é a verdadeira justiça, para que, ao menos em potência, sejam efetivados os direitos humanos.
A despeito das origens antigas, a expressão “direitos humanos”, é recente em termos históricos. Seu processo de consolidação tem como marcos decisivos a Declaração de Independência dos Estados Unidos, ocorrida em 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada na França em 1789. As referidas declarações, de teor revolucionário e normativo, fizeram emergir direitos que buscavam proteger as liberdades civis e políticas dos cidadãos contra atos despóticos perpetrados pelo Estado e consolidaram fundamentos ideológicos que contribuíram para o desenvolvimento do tráfego negocial.
Em 1948, período imediatamente posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial, ascendeu a Declaração Universal dos Direitos Humanos que incorporou ao seu texto direitos econômicos e sociais, meros desdobramentos da Declaração de 1789, ampliando assim o rol dos direitos inerentes à categoria humana, reflexo de uma aproximação definitiva entre os direitos fundamentais e o mercado.
Não obstante o triunfo dos direitos da humanidade, remanesce o problema a ser enfrentado na presente pesquisa: é possível a realização da cidadania no mundo contemporâneo caracterizado pelas relações de convergência e tensão entre os direitos humanos e o sistema econômico capitalista?
Levantamos a hipótese de que o processo de cidadania está relacionado com o acesso dos indivíduos às suas necessidades consideradas essenciais, as quais não são estáticas, tais como: alimentação saudável, vestuário, serviços sociais indispensáveis, segurança, educação de qualidade, cultura, progresso científico, emprego, transporte, comunicação[2], moradia digna, repouso, lazer, bem-estar, entre outras diretamente associadas à percepção de dignidade e pertencimento do indivíduo na coletividade.
As referidas necessidades têm conexão não somente com o status da cidadania, mas com a dinâmica das relações de troca na sociedade, diante do fato de que os mesmos, caso não providos pelo Estado, podem ser acessíveis aos indivíduos por meio do consumo, ou seja: convertidos em produtos ou serviços e negociados no mercado. Neste contexto, há que se considerar que o processo de desenvolvimento da cidadania se dê na “Sociedade Econômica”, expressão utilizada por Kojève para designar o lócus de interação entre os indivíduos no mercado, onde ocorrem as relações de troca de produtos: “Thus, the specific Droit of this Society, economic Droit, is the Droit that is applied to social interactions aiming at the Exchange of artifacts. It is to these interactions that this Droit applies a given ideal of Justice”[3].
Se na Sociedade Econômica ocorrem as relações de troca, de acumulação, de circulação e de repartição de recursos, nela também ocorre o reconhecimento almejado pelo desejo do indivíduo pela cidadania:
In the final analysis, economic Society and its Droit are based upon the (specifically human) phenomenon of Exchange. Now in order for a thing (in the broad sense) to become an object of exchange, it must be, on the one hand, linked to a human being (individual or collective), and on the other hand, be alienated or alienable from the hic et nunc of this being, of the human being taken as a natural being (from this “body” in the broad sense)[4]
A despeito do koiné de suas raízes históricas, e dos variados pontos de interseção existentes, as finalidades do mercado e dos direitos humanos não convergem per se. O mercado, representação do sistema econômico capitalista, tem na sua essência o ímpeto empreendedor da maximização do lucro. O discurso dos direitos humanos tem como fundamentos a unidade e a dignidade singulares da espécie humana.
Há, contudo, uma clara relação de interdependência entre os institutos. O tráfego negocial necessita das garantias compreendidas no leque dos direitos fundamentais que conferem previsibilidade ao comportamento humano, ao passo em que permite a propagação de um mercado integrado por consumidores, capazes de absorver os produtos e serviços ofertados.
Por sua vez, o acesso às necessidades essenciais dos indivíduos e a concretização de garantias econômico-sociais estão condicionadas à atividade econômica intensa, que permite ao Estado obter os recursos necessários ao seu custeio. Em contrário sensu, o “Estado providência” demanda grandes quantidades de recursos, geralmente arrecadados por meio da tributação dos contribuintes, contudo a elevada carga tributária é, entre outros, fator de dissuasão para a expansão da atividade empreendedora geradora de riquezas.
As tensões contemporâneas existentes entre os direitos humanos e o mercado revelam um importante hiato: após um longo progresso racional temporal, a liberdade do indivíduo atingiu seu estágio máximo de desenvolvimento em potência. Todavia é sabido que as declarações de direitos humanos, de caráter universal, não foram suficientes para garantir que todas as pessoas usufruíssem plenamente dos seus postulados.
Diversos fatores corroboram para que os enunciados libertários não sejam concretizados de forma universal, entre eles: a profusão de direitos fundamentais, por vezes contraditórios entre si, a mitigação do arquétipo do welfare state pelas dificuldades de custeio dos direitos sociais e a pluralidade de espaços decisórios, reflexo da expansão dos processos de integração que evidenciam o surgimento de relações de interdependência entre agentes políticos, econômicos e sociedade civil.
Logo, a realização de ações prestacionais depende de recursos e de vontade governamental, no entanto, há que se reconhecer a existência de variados agentes que dividem espaços de poder e influenciam as decisões estatais. Ainda que não se coloque sua soberania em xeque, o Estado já não é a única fonte de autoridade apta a garantir de forma inexorável que a concretização dos direitos reconhecidos seja estendida a todos.
Se, por um lado, os Estados nacionais perderam o monopólio do poder fático de regulação, por outro, tornaram-se mais vulneráveis às crises econômicas globais cujos reflexos são capazes de fazer retroceder direitos conquistados.
A despeito da pluralidade dos espaços de poder, é prematuro afirmar que o papel do Estado nas ordens social e econômica foi reduzido. No entanto, é certo que sua atuação passou a ser revestida de maior complexidade, haja vista que a implementação de políticas econômicas e sociais convive em maior ou menor intensidade com a influência de outros atores no âmbito nacional ou internacional, como explica Belluzzo:
Vão longe aqueles tempos em que as políticas econômicas, em quase todos os países, cuidavam do desenvolvimento econômico, do pleno emprego e do bem-estar das pessoas. Hoje em dia elas têm de cuidar de sua credibilidade diante dos mercados financeiros, um tribunal de cujas decisões não cabem recurso. Em compensação, todos participam da grande aventura da globalização. O progresso exige certas renúncias[5].
Contudo, variados episódios históricos demonstraram que o Estado-nação, é a instância a qual o mercado recorre para solucionar suas crises sistêmicas, a despeito de estar situado em um ambiente global onde os espaços de poder são compartilhados com atores capazes de influenciar nas decisões, e que por vezes clamam por menor intervenção. Diversas crises econômicas ocorridas na história, da qual emergiram necessidades de positivação de direitos, ou demandaram medidas de natureza prestacional, foram precedidas de reivindicações populares.
Nesse sentido, a ação estatal orientada para suprir demandas sociais é fundamentada axiologicamente no imperativo da dignidade humana, reflexo do fato de que, a despeito da importância do mercado, a sociedade econômica contemporânea é integrada por indivíduos possuidores de objetivos e que nem sempre são tolerantes aos momentos de escassez, sobretudo quando conscientes de sua “absoluta autonomia”[6], mecanismo de preservação ou de reivindicação de direitos.
A presente proposta de pesquisa se justifica necessidade de decifrar como se dá o processo cidadania no contexto de uma economia globalizada no mundo conteporâneo, cujos clamores sociais possibilitam o surgimento de novas conexões entre o Estado e a sociedade diante do fenômeno da globalização. Entre as novas conexões, destacam-se espaços decisórios, não controlados pelo ente estatal, mas induzidos pela sociedade civil, os quais podem propiciar, ou não, a relação mais direta entre novos sujeitos nacionais, internacionais e o poder institucional, e favorecem a radicalização de um processo plural, viabilizando cenários de mobilização para a afirmação e fortalecimento de direitos humanos[7].
[1] HEGEL, Georg W. Friedrich. Filosofia da história. Brasília: Universidade de Brasília, 2008.
[2] No dia 21 de dezembro de 2016 o CRTC – Canadian Radio-Television and Telecommunications Comission, órgão regulatório de telecomunicações do Canadá passou a classificar a internet de banda larga como serviço essencial e anunciou investimentos no valor de US$ 750.000,00 para levar o serviço para áreas rurais. CBC News. CRTC declares broadband internet access a basic service. Disponível em: http://www.cbc.ca/news/politics/crtc-internet-essential-service-1.3906664. Acesso em: 12 mar. 2020.
[3] KOJÈVE, Alexandre. Outline of phenomenology of right. Tradução Bryan-Paul Frost. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, Inc, 2000. p. 434. Assim, o Direito específico desta Sociedade, é o Direito que é aplicado a interações sociais visando à troca de mercadorias. É para essas interações que se aplica um determinado ideal de Justiça. (Tradução nossa).
[4] Ibidem, p. 435. Em última análise, a sociedade econômica e seu Direito são baseados no fenômeno (especificamente humano) da troca. Ora, para que uma coisa (no sentido amplo) se torne objeto de troca, ela deve estar, por um lado, relacionada a um ser humano (individual ou coletivo) e, de outro lado, ser alienada ou alienável hic et nunc, do ser humano tomado como um ser natural (deste "corpo" no sentido amplo). (Tradução nossa)
[5] BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. Globalização e inserção nacional. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 dez. 1996. Disponível em: <http://www.eco.unicamp.br/artigos/belluzzo/artigo21.htm >. Acesso em: 20 fev. 2008.
[6] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. São Paulo: Loyola, 1995. p. 206. v. 3.
[7] BARRAL, Welber (Org.). Direito e desenvolvimento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento. Prefácio de Amartya Sen. São Paulo: Singular, 2005. p. 68.
Nome | Função no projeto | Função no Grupo | Tipo de Vínculo | Titulação Nível de Curso |
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RAFAEL ROCHA DE MACEDO
Email: rafmacedo@hotmail.com |
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