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O SANTO LENHO EM PORTUGAL: UMA RELÍQUIA DE PRESTÍGIO (SÉCULOS XIII E XIV)
2018/1 até 2021/2
ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES
CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES
Poder e representações
RENATA CRISTINA DE SOUSA NASCIMENTO
Objetivo geral: Pretende-se, nesta pesquisa, analisar um importante símbolo da paixão de Cristo existente em Vera Cruz do Marmelar, desde o século XIII, considerado um fragmento do Santo Lenho. Em Portugal a Ordem Militar de São João de Jerusalém ou do Hospital tornou-se a guardiã desta relíquia, que se preserva ainda hoje na Igreja de Vera Cruz de Marmelar, freguesia do município de Portel, sendo o rei D. Afonso III o promotor da formação do senhorio de Portel em 1257. A Comenda da Vera Cruz de Marmelar, tornou-se neste cenário de proteção de fronteiras pós- reconquista e fortalecimento do poder real, veículo importante da presença hospitalária na região.
Objetivos específicos:
- Discutir a popularidade devocional da adoração às relíquias do Santo Lenho em Portugal durante a Idade Média, dando destaque ao Lignum Crucis, existente em Marmelar, e, em que sentido, este propiciou a ocupação demográfica e econômica da região.
- Incluir outras relíquias do Santo Lenho em Portugal, que tiveram alguma relevância entre os séculos XIII e XIV. Estas situam- se hoje no Mosteiro de Moreira, em Maia, e na Igreja do Desterro, em Lisboa, tendo por base uma análise comparativa.
- Analisar a intensificação do culto à relíquia do Santo Lenho na Idade Média, enfatizando a carga histórica e simbólica que a Igreja de Vera Cruz representa. A Cruz do Marmelar foi o centro irradiador do espírito cruzado vencedor na Batalha do Salado, além de estar presente em outros momentos importantes da história da monarquia portuguesa, sendo considerada portadora de qualidades miraculosas.
As relíquias cumprem uma função cultual e, ao mesmo tempo, de estruturação do espaço cristão na Palestina (e posteriormente em outras regiões), colaborando na apropriação deste espaço, sendo um repositório portátil da memória e da história cristã. Evento fundador da religião cristã, a Paixão de Cristo, expressa de forma discursiva nos evangelhos, contribuiu para criar na Palestina uma geografia do sagrado, sendo o móbil dos primeiros movimentos de Cruzada. É neste contexto que surgem as Ordens Militares. Para contextualizar o tema dividimos nosso estudo em três momentos; 1º- A Ordem de São João de Jerusalém: Da Palestina à Península Ibérica; 2º- A Paixão de Cristo e a Tactibilidade do Sagrado e 3º- Relíquia da Vera Cruz em Marmelar: Símbolo de sacralidade e legitimidade.
2.1-A Ordem de São João de Jerusalém: Da Palestina à Península Ibérica
Criadas no contexto cruzadístico as Ordens Militares aparecem como a expressão mais evidente da sacralização da guerra. O monge guerreiro representou uma grande novidade no plano da espiritualidade medieval. Dentre as diversas ordens militares, destacam-se inicialmente a dos Templários e a dos Hospitalários[1], sendo a 1ª cruzada (1096- 1099), e a região do Santo Sepulcro, no bairro tornado cristão, seu espaço inicial de atuação. A peregrinação à Cidade Santa, já era um costume arraigado na devoção cristã, desde o “achamento” da Santa Cruz, no século IV. A posse dos lugares santos e sua manutenção foi fundamental na projeção terrestre dos eventos bíblicos, estar no espaço da vida, da morte e da ressurreição de Cristo era algo almejado por muitos. É neste contexto de peregrinação que se insere o surgimento da Ordem de São João do Hospital, servindo como base de apoio aos peregrinos que visitavam os locais santos. Oficializada pelo papa Pascoal II em 1113, a Ordem deveria cumprir sua dupla função; caritativa e militar.
Na verdade, a primeira vez que os textos referem os frates armorum, ou seja, freires de armas, foi em 1182. Esta transição foi lenta e gradual e chamou a atenção do Papa Alexandre III, que nos anos 70 do século XII, insistia junto ao Grão- Mestre que a primeira obrigação dos freires era o cuidado dos pobres e que o empenho nas armas só seria aceitável quando a relíquia da Santa Cruz acompanhasse as hostes cristãs. (COSTA, 2009, 21).
É importante notar a importância, desde o início do cristianismo, da Cruz de Cristo como elemento de legitimidade, artefato divino, símbolo de proteção e sacralidade. Na Península Ibérica, desde o começo do século XII, especialmente na região da Galiza, a Ordem do Hospital dedicou-se à proteção dos peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela, tanto pelo caminho francês, como por rotas secundárias procedentes de outras regiões, como é o caso de Portugal[2]. Em terras lusitanas a prática caritativa foi inicialmente o principal motivo para a implantação dos hospitalários, ficando em segundo plano a necessidade militar. Com o crescimento da Ordem, seu viés militar foi pouco a pouco acentuado. As doações régias foram muito importantes na formação do patrimônio do Hospital. Sua primeira sede foi em Leça de Bailio e, posteriormente, no Crato.
O formato organizativo corresponde à existência de um único Priorado em Portugal, o do Crato. As bailias e as comendas correspondiam em um patamar inferior, unidades locais de implantação hospitalária. Marmelar tornou-se uma importante comenda, exatamente por possuir em seu interior um fragmento atribuído à cruz de Cristo. Segundo Pagará (2006, 21) a documentação estabelece o ano de 1268 como a época da instalação da Ordem de São João neste território. A Comenda da Vera Cruz tornou-se, neste cenário de proteção de fronteiras pós- reconquista e fortalecimento do poder real, veículo importante da presença hospitalária no Alentejo.
O culto das relíquias é parte integrante e significativa do patrimônio cultural e espiritual da igreja cristã. Os lugares e os objetos associados à vida de Jesus Cristo e dos santos foram redimensionados pelos fiéis, pois estes poderiam proporcionar o contato direto com a sacralidade presente nestes fragmentos. Os cultos realizados nos lugares da morte dos mártires poderiam comprovar a existência terrena e miraculosa destes homens especiais.
A partir do século V, houve uma intensa proliferação da fabricação de relíquias (inventio) relacionadas à vida e à morte de Cristo, à Bem- aventurada Virgem Maria, aos apóstolos e a outros personagens presentes nos relatos evangélicos, especialmente no Oriente (Constantinopla e Jerusalém), e, também, uma intensa movimentação (translatio) de relíquias dos mártires e de outros santos de Roma para as igrejas particulares e dessas entre si.” (Nunes JR, 2013,97)
A nova interpretação do Antigo Testamento, após a cristianização do ocidente, passou a ver a história de Israel como uma narrativa singular, tendo por objetivo principal conduzir os fiéis ao momento da vida, morte e ressurreição de Cristo, vistos agora como auge da interpretação da vontade de Deus, e sua intervenção direta na história humana. “Portanto era igualmente sobre o reino de Israel, o qual agora os cristãos viam como o autêntico reino de Deus, que da árvore reinava o Crucificado” (PELIKAN, 200, 26). Os apologistas incluíram uma referência explícita à cruz, “o senhor reina da árvore”. A madeira usada na crucificação do messias passa a adquirir status de santidade, especialmente após o século IV, em que a imperatriz Helena, mãe de Constantino, empreendeu a busca da verdadeira cruz, se apropriando dos lugares relacionados à vida de Jesus[3]. O achamento da santa cruz, maior ícone da fé cristã, trás em si uma enorme carga simbólica. Este episódio está relacionado, desde o princípio, a vários prodígios. De acordo com a tradição ao encontrar o local da crucificação foram achadas três cruzes, e, por meio de um milagre, a verdadeira cruz manifestou-se.
A fragmentação do Lignum Crucis e de outras pretensas relíquias da paixão, trazidas a Roma por Santa Helena, atingiu enorme proporção e também gerou muitos abusos, obrigando as autoridades eclesiásticas a intervir. Independente da aprovação do papado, a veneração aos objetos sacros proliferou enormemente durante a Idade Média. Neste âmbito a cidade de Constantinopla tornou-se uma grande depositária de relíquias. Entre estas o Santo Sudário, trazido a esta cidade em 944, quando os exércitos bizantinos, durante uma campanha contra o sultanato árabe de Edessa, entram em posse do mandylion e o levam solenemente para Constantinopla. O Sudário, hoje em Turim, é ainda uma das mais prestigiadas relíquias da cristandade, e teve sua veneração aprovada pelo papa Júlio II, em 1506. A sobrevivência desta veneração, ao longo dos séculos, revela a importância que possuem no seio da cristandade, e podem ser consideradas como fatores de identidade para a religião cristã.
2.3-A Relíquia da Vera Cruz em Marmelar: Símbolo de sacralidade e legitimidade
O senhorio de Portel começou a ser formado por volta de 1257, quando D. Afonso III (1210- 1279), doou parte do território a João Peres de Aboim[4], que recebeu terras dos concelhos de Évora e Beja.[5] Em 1271 Peres de Aboim entregou o padroado das igrejas de Portel à Ordem de São João de Jerusalém, na figura do Frei Afonso Pires Farinha, de importante linhagem, como forma de atrair uma Ordem militar para este território, ainda levemente povoado e protegido. “A edificação da estrutura inicial do futuro Mosteiro de São Pedro de Vera Cruz remonta ao período visigótico, sendo hoje aceite a existência, no mesmo lugar, de um estabelecimento monástico desde o século VII” (Nascimento, 2014, 7). Este foi refundado pela Ordem do Hospital em meados do século XIII. Não se sabe ao certo quando o Mosteiro Hospitalário de Marmelar começou a funcionar em regime de Comenda. Como aponta Paula Pinto Costa (2013, 211), neste primeiro momento não há diretamente nenhuma referência documental à presença do Santo Lenho, o que sugere sua existência neste local em data posterior à Batalha do Salado (1340), embora exista uma tendência mais tradicional, baseada no Agiológio Luzitano[6], em apontar Frei Afonso Pires de Farinha como o responsável por trazer a Santa Relíquia de Jerusalém, o que hoje não mais encontra sustentação.
Na Península Ibérica o evento da Batalha do Salado (1340), é o mais significativo da função protetora e agregadora promovida pela presença da Santa Cruz em uma guerra de grandes proporções. Conduzida pelo Prior do Hospital Frei Álvaro Gonçalves Pereira[7], este episódio, deu a ele lugar de destaque, sendo portador da relíquia, instrumento da ação divina[8]. A importância dada pela historiografia à Memória do Salado enfatiza a construção de imagens sobre a vitória cristã, que valorizam a ação do Prior do Crato no confronto. Dentro do imaginário de cruzada o Marmelar teria recebido a relíquia, sendo depositada em cofre- relicário doado por Nuno Álvares Pereira[9], alterando assim o orago de São Pedro para o de Vera Cruz. “O primeiro documento conhecido que se reporta ao mosteiro como sendo da invocação da Vera Cruz é de 5 de maio de 1397.” (Costa, 2013, 218).
Outro aspecto que deve ser ressaltado é a questão das disputas entre as principais linhagens que gravitavam no âmbito da Ordem. Góis/ Farinha e Pereira assumiram a gestão de Comendas de primeira importância, “a de Marmelar, no caso dos de Góis, e a do Crato/ Flor da Rosa, no caso dos Pereira.” (Costa, 2013, 229). Tanto Marmelar, quanto Flor da Rosa, podem ser consideradas como espaços de projeção do oriente latino no contexto português, pós reconquista. Marmelar seria uma segunda Jerusalém e Flor da Rosa uma revivência da estrutura hospitalária em Rodes. Os Góis/Farinha, fundadores do Mosteiro do Hospital em Marmelar, e os Pereira como fundadores do castelo fortificado de Flor da Rosa desde 1341. A relíquia seria objeto de disputas entre estas famílias. A disputa revela a importância da posse deste objeto sacro, especialmente após a intensificação do culto ao Santo Lenho. Além disso, ao longo da História, os monarcas portugueses desenvolveram grande devoção pela famosa relíquia de Vera Cruz, intensificando as doações e privilégios aos que participassem das celebrações, instituindo também feiras na região. D. Afonso V (1450) instituiu feira franca em Vera Cruz de Marmelar, no dia da festa religiosa de Invenção da Cruz que, pelo calendário litúrgico, ocorre no dia 3 de maio. Este privilégio veio a ser confirmado por D. João II. (PAGARÁ, 2006, 41)
O prestígio da relíquia, expresso por concessões régias, intensificam os privilégios para quem fosse viver no lugar, contribuindo para superar os obstáculos de desenvolvimento da Comenda, como a escassez demográfica. Na época medieval as igrejas, mosteiros e cidades rivalizam entre si, procurando possuir o exclusivo das relíquias mais notáveis. Entre estas estão os fragmentos atribuídos à Santa Cruz. Tomás de Kempis em 1441, traduz em palavras o significado da cruz para a memória cristã;
Na cruz está a salvação, na cruz a vida, na cruz o amparo contra os inimigos, na cruz a abundância da suavidade divina, na cruz a fortaleza do coração, na cruz o compêndio das virtudes, na cruz a perfeição da santidade. Não há salvação da alma nem esperança da vida, senão na cruz. Toma, pois a tua cruz, segue a Jesus e entrarás na vida eterna. O senhor foi adiante, com a cruz às costas, e nela morreu por teu amor, para que tu também leves a tua cruz e nela desejes morrer. (KEMPIS, 2012, 90)
A memória ritualizada, revivida em cada ato litúrgico, proporciona aos fiéis “ver e contactar os lugares funerários e os relicários, que constituíam a prova mais cabal e imediata de que Cristo e as suas testemunhas permaneciam forças vivas e atuavam por meio de suas relíquias”. (GOMES, 2009, 61). Os olhos dos peregrinos viam nestes objetos a possibilidade de libertação, física e espiritual, independente de sua autenticidade, tinham estas partes atribuídas ao madeiro da Cruz sua própria simbologia, propiciando ao homem medieval uma experiência mística de grande valor.
[1] A Ordem de São João do Hospital teve várias sedes: Jerusalém, São João D’ Acre, Chipre, Rodes e Malta.
[2] MARCHINI, Dirceu. A Ordem do Hospital no Noroeste da Península Ibérica: Doações e Privilégios (Séculos XII- XV). Dissertação de Mestrado. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010.
[3] Atribuiu-se a Helena, mãe do imperador Constantino (272- 337) a redescoberta dos lugares da paixão, que no ano de 326 teria peregrinado à terra santa e localizado o local da crucificação e o sepulcro de Jesus. O imperador endossou sua descoberta, lá construindo uma igreja, que, apesar de todas as vicissitudes, permaneceu como o principal santuário da cristandade, a Igreja do Santo Sepulcro. (Nascimento, 2014, 3)
[4] Nascido por volta de 1210 foi companheiro de juventude do Infante Afonso (futuro rei Afonso III), acompanhando-o em sua estada em França. Regressa com ele a Portugal, combatendo a seu lado contra D. Sancho II e no processo de conquista do território nacional. Em 1264 foi nomeado mordomo- mor do rei em 1264. (PAGARÁ. Ana & outros. Igreja Vera Cruz de Marmelar. Portel: Página Editores, 2006.p 26)
[5] AZEVEDO, Pedro de (publicação de). Livro dos Bens de D. João de Portel, Cartulário do século XIII, Lisboa: Câmara Municipal de Portel e Edições Colibri, 2003.
[6] Segunda notícia do santíssimo lenho do Agiologio Luzitano, composto pello Ilustre Jorge Cardozo no Tomo 3º folha 55 e diz a noticia depois de haver tratado o author de outras couzas — as palavras seguintes: (…) esta Famoza relliquia trouxe de Hierusalem Fr. Affonso Pires Farinha Prior do Hospital, o qual edificou este mosteiro [de Marmelar] à instância do illustre D. João de Aboim (…). He certo, segundo a tradição e voz constante, que vinha esta relliquia a Sée de Évora deregida e chegando ao lugar da Fonte Santa, nunca a mula que a trazia quis passar adeante athe que lhe foi tirada a sagrada carga e para que não service em profanos uzos, estalou de repente, com admiração de todos, que ali se acharão; e para ficar mais famoso o prodígio brotou a terra hum canal de agoa que houje persevera com o titolo da Fonte Santa. E conforme a mesma tradição consta que o Arrieiro metendo na terra a vara com que picava a mula, em continente se vio hum fermozo pinheiro de que ainda há memorias, e de que levando os romeiros feito em cruzes obrava por ellas o Ceo grandes maravilhas; tudo isto consta da tradição à qual nada acrescento, e ainda houje por maravilha se concerva o pé do dito pinheiro tão fresco e verde, que he admiração de todos …(Patalim, 1730).
[7] FERNANDES, Fátima Regina. Sociedade e Poder na Baixa Idade Média Portuguesa: Dos Azevedo aos Vilhena: as famílias da nobreza medieval portuguesa. Curitiba, Editora UFPR, 2003.p 146-155.
[8] Ver FERNANDES, Fátima Regina. O Poder do Relato na Idade Média Portuguesa: a Batalha do Salado de 1340. In Revista Mosaico. Vol nº 4. Goiânia: PUC-Go, 2011 p 75- 91
[9] Ainda hoje , a relíquia da Vera Cruz é guardada no cofre- relicário medieval.
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RENATA CRISTINA DE SOUSA NASCIMENTO
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